Blitz da Lei Seca: Entre a Salvaguarda de Vidas e a Sombra do Desvio de Finalidade
Operações de fiscalização, essenciais para a segurança no trânsito, geram um intenso debate sobre seus verdadeiros objetivos, levantando suspeitas de que a arrecadação de impostos possa estar se sobrepondo à prevenção da embriaguez ao volante.
Por Jardel Cassimiro, para a Revista Correio 101
As luzes intermitentes dos veículos policiais cortam a escuridão da noite, criando uma barreira inconfundível na via. Para muitos condutores, a cena é sinônimo de prevenção, um lembrete severo, porém necessário, de que álcool e direção são inimigos mortais. Instituída com o nobre propósito de reduzir o trágico número de acidentes causados por motoristas embriagados, a "Lei Seca" se consolidou no Brasil como uma das mais eficazes políticas de segurança no trânsito. Contudo, sob o capô desta bem-sucedida engrenagem, cresce um ruído incômodo: a percepção de que seu foco primordial pode estar sendo desviado.
A questão, levantada por cidadãos e especialistas, é cirúrgica: as blitze da Lei Seca ainda são estritamente sobre a lei seca? Ou se tornaram uma ferramenta multifuncional de fiscalização, onde a verificação de débitos veiculares, como o IPVA e o licenciamento, ganha um protagonismo inesperado, transformando uma operação de segurança vital em uma aparente máquina de arrecadação?
A análise metodológica dessas operações, como sugerido em debates públicos, torna-se crucial. "É imprescindível a publicização do que foi feito, o porquê desses veículos terem sido recolhidos e quantas pessoas foram detidas por estar ao volante após utilizar álcool", aponta uma corrente de observadores críticos. A falta de transparência nos dados detalhados de cada blitz alimenta a controvérsia. Quantos veículos são apreendidos por irregularidades administrativas em comparação com o número de motoristas flagrados no etilômetro? Sem esses números, a sociedade navega em um mar de suposições.
A Legalidade em Xeque e a Percepção Pública
Do ponto de vista estritamente legal, não há irregularidade. Uma vez que um veículo é abordado por um agente de segurança, este tem a prerrogativa de realizar uma verificação completa da documentação do condutor e do veículo. Se uma infração administrativa for constatada, como o licenciamento vencido, a lei prevê sanções que podem incluir a remoção do veículo.
O problema, argumentam os críticos, não reside na legalidade do ato isolado, mas na finalidade da operação como um todo. "O nome dela já diz blitz da lei seca", ressalta-se, indicando que o propósito comunicado à população é específico. Quando a grande maioria das autuações e recolhimentos se dá por motivos fiscais, e não pela alcoolemia, a confiança na instituição é abalada. O motorista que se preparou para o teste do bafômetro, ciente de sua responsabilidade, pode se sentir alvo de uma "armadilha" arrecadatória se seu veículo for guinchado por um imposto atrasado, algo que poderia ser resolvido por outros meios de cobrança.
Especialistas em segurança pública alertam para o perigo dessa percepção. A eficácia da Lei Seca depende intrinsecamente da colaboração e do apoio da sociedade. Quando os cidadãos passam a ver as blitze não como uma proteção, mas como uma ameaça ao seu patrimônio por questões burocráticas, a legitimidade da operação é corroída. Isso pode levar a comportamentos de evasão que, paradoxalmente, colocam em risco a segurança de todos, inclusive do motorista que tenta fugir da fiscalização.
O Impacto Social e a Necessidade de Equilíbrio
A remoção de um veículo por débitos fiscais gera um impacto social e econômico profundo. Para muitos brasileiros, o carro ou a motocicleta não é um luxo, mas uma ferramenta de trabalho essencial. A perda desse bem, mesmo que temporária, pode significar a perda do sustento de uma família. Os custos para a liberação do veículo — que incluem multas, taxas de guincho e diárias do pátio — frequentemente criam uma dívida em cascata, tornando a recuperação do patrimônio uma tarefa hercúlea.
As autoridades, por sua vez, defendem a fiscalização integrada. Argumentam que um veículo com a documentação irregular pode estar associado a outros problemas, como falta de manutenção adequada, seguro obrigatório vencido e até mesmo o uso em atividades ilícitas. Para eles, a abordagem completa garante uma segurança mais ampla, removendo das ruas não apenas o condutor perigoso pela bebida, but também o veículo que representa um risco em potencial.
O desafio, portanto, é encontrar um ponto de equilíbrio. É inegável o sucesso da Lei Seca em salvar vidas, e seu enfraquecimento seria um retrocesso inaceitável. No entanto, é igualmente inegável a necessidade de uma aplicação mais transparente e fiel ao seu propósito original. A solução pode passar pela criação de operações distintas — uma com foco total e absoluto na alcoolemia, e outra, claramente comunicada como tal, para a fiscalização de documentação.
Enquanto a clareza não vier, as luzes intermitentes continuarão a dividir opiniões, refletindo a complexa encruzilhada brasileira onde a segurança pública, os direitos individuais e a sede arrecadatória do Estado colidem em plena madrugada. A sociedade aguarda por respostas e, acima de tudo, por coerência.
JARDEL CASSIMIRO
