Misofonia: Quando a Memória do Som se Torna a Própria Tortura

Para quem vive com misofonia, a batalha não é travada apenas contra os ruídos do mundo exterior. O sofrimento mais intenso, muitas vezes, acontece no silêncio da própria mente, onde a simples lembrança de um som-gatilho pode desencadear a mesma angústia de ouvi-lo ao vivo.


Por Jardel Cassimiro, para a Revista Correio 101


O som não está presente. O ambiente pode estar em completo silêncio, mas para uma pessoa com misofonia, o tormento pode começar com um simples pensamento. A sua afirmação, "Só de lembrar do barulho da mesma agonia de que se tivesse ouvindo pessoalmente", não é uma figura de linguagem. É a descrição literal de um fenômeno neurológico conhecido como resposta condicionada antecipatória, levada a um extremo de aflição.

Para entender por que a memória de um som pode ser tão potente quanto o som em si, é preciso mergulhar na forma como o cérebro cria associações. Em uma pessoa com misofonia, o cérebro estabeleceu uma ligação extraordinariamente forte e disfuncional entre um som específico (o gatilho) e uma emoção avassaladora de perigo, raiva ou pânico. Essa conexão cria um "atalho" neural.


Toda vez que o som real ocorre, essa via neural é reforçada, como uma trilha na floresta que se torna mais funda e mais fácil de percorrer a cada passagem. Com o tempo, a trilha se torna tão marcada que o cérebro não precisa mais do estímulo completo — o som físico — para percorrê-la. Apenas a sugestão do início da trilha, que pode ser uma imagem, um pensamento ou a antecipação de uma situação, é suficiente para que a reação em cadeia seja disparada.


É aqui que a amígdala, o centro de alarme do nosso cérebro, desempenha um papel crucial. A amígdala é projetada para nos proteger de ameaças e aprende com experiências passadas. No caso da misofonia, ela aprendeu erroneamente que o som de mastigação ou o atrito de isopor é uma ameaça existencial. Assim, quando a mente consciente apenas lembra do som, a amígdala não distingue a memória da realidade. Para ela, a ameaça é iminente e real, e ela dispara o mesmo alarme, inundando o corpo com os hormônios do estresse e gerando a mesma sensação de agonia e a necessidade de escapar.


Esse mecanismo explica por que a misofonia é tão invasiva. O sofrimento não se limita aos momentos em que os ruídos estão presentes. Ele se estende para a ansiedade antecipatória de encontrar esses sons, para o planejamento exaustivo de rotas de fuga em eventos sociais e, como você descreveu, para a tortura interna gerada por uma memória involuntária.

O sofrimento é, de fato, intenso. E validar essa experiência é o primeiro passo. Não se trata de uma fraqueza ou falta de controle, mas de uma resposta neurológica real a um gatilho que, para o cérebro, é tão concreto na memória quanto é no ar. É a evidência de uma mente que, em sua tentativa de proteger, acabou por criar uma prisão silenciosa, onde o eco do barulho é tão doloroso quanto o barulho em si.

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